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terça-feira, janeiro 31, 2006

Cada Macaco No Seu Galho


A coerência é inimiga do facilitismo, do pensamento curto... Não é nossa por direito próprio, é cara, é um desafio. Nem todas as nossas verdades são compatíveis, o que dizemos hoje sobre o Amor não desculpa o nosso Ódio de amanhã... E a maior das incoerências é sentir-me revoltado quando alguém não é coerente, pelo menos até ao dia em que eu possa dizer que o sou a tempo inteiro... Suspeito que essa incoerência não se descolará de mim tão cedo...! Porque nem conseguirei sempre ser coerente nas minhas idéias, virtudes, defeitos, causas, negligências... Nem muito menos conseguirei deixar de me revoltar quando alguém, próximo ou não, me exibe o seu irreflectido desprendimento da verdade, da razão e... da coerência.
A revolta do dia chega-me em formato 2 em 1, ou melhor, chega ao mesmo tempo por duas vias: um pivô de telejornal que não conheço pessoalmente, mas que me deve a seriedade e a isenção que supostamente jurou, e um familiar próximo que comigo escutava o mesmo telejornal:

As nomeações para os Óscares!! Com o interesse que habitualmente dedico ao evento, espero as revelações, conjuro se haverá surpresas...
O pivô anuncia, com sorriso rasgado, que foram hoje divulgados os nomeados... e introduz a peça dizendo que o filme mais nomeado é "Brokeback Mountain", de Ang Lee. "O filme é uma história de amor..."(pausa) Aqui, querendo ser engraçado e como se estivesse a falar para uma cambada de retrógados e mentecaptos, chega-se mais perto da câmara, apoia-se na mesa, baixa o tom de voz, e finaliza: "...entre dois Cowboys!". Ui, que chocados que todos nós ficámos!!
A dita peça sobre as nomeações começa precisamente com um excerto do filme de Ang Lee, e imagens dos dois protagonistas apaixonados...
Às quais o tal meu familiar dedica o comentário: "Até os cowboys já são paneleiros!"
Este meu familiar é o mesmo que, por várias vezes, pregou aos membros mais jovens da família que não se deve julgar ninguém baseado em factores tão fúteis como a aparência, ou descriminar seja quem for só porque não é parecido connosco... Mas então porquê esta reacção a um beijo apaixonado de Heath Ledger e Jake Gylenhall? Ah, mas é evidente!
Os sábios e sensatos conselhos que este meu jovem familiar desfiava vinham na sequência de comentários jocosos e depreciativos que duas adolescentes, na irreflexão própria da idade e das modas que a acompanham, haviam feito sobre uma colega "bimba" e "mal-vestida"...
Ele, muito bem, advertiu-as de que não era correcto apontar-lhes o dedo por serem diferentes delas próprias... E ele sabe bem o que é ser vítima desse julgamento... Não abunda nele o maior dos primores no que diz respeito à indumentária, e a própria mãe já chegou a assustar-se ao cruzar-se na rua com ele e os seus amigos maltrapilhos, confundindo-os com drogados ou assaltantes... Situação desagradável.
Mas uma coisa é não apontar o dedo aos seus amigos maltrapilhos e descuidados, que no entanto são pessoas com vivências "normais", outra coisa é reagir com complacência perante um beijo entre dois homens! Isso não! "Deviam ter vergonha!"

A Integridade e a Tolerância, pelos vistos, nem sempre estão à mão de semear... Só quando nos dá mais jeito, só quando nos servem melhor...

Porquê?

"Não importa o que se ama. Importa a matéria desse amor. As sucessivas camadas de vida que se atiram para dentro desse amor. As palavras são só um princípio - nem sequer o princípio. Porque no amor os princípios, os meios, os fins são apenas fragmentos de uma história que continua para lá dela, antes e depois do sangue breve de uma vida. Tudo serve a essa obsessão de verdade a que chamamos amor. O sujo, a luz, o áspero, o macio, a falha, a persistência."

Ines Pedrosa, in "Fazes-me Falta"